Já fui chamada de hipócrita no trabalho uma vez. Não exatamente com essa palavra, mas digo que soou até mais duro. Na época, eu trabalhava em uma empresa com valores incompatíveis com os meus. Precisei desenvolver uma campanha para ajudar a disseminar valores organizacionais. Apesar do cenário terrível em que precisava atuar, fiz o trabalho com empenho e criatividade, mas isso obviamente não alterou a realidade da empresa, então a campanha soou hipócrita, eu também.
Certo dia, com o trabalho em andamento, um funcionário para lá de descontente entrou na sala, perguntou se eu era a responsável pela campanha e me ofendeu (conto tudo nesse artigo de 2019). Estava claro que ele me considerava hipócrita porque eu estava ajudando a divulgar valores que não existiam. Fiquei assustada pela forma agressiva como tudo aconteceu, mas, no final, aquela pessoa teve papel importante na minha vida.
A realidade é que quem atua no mundo corporativo, muitas vezes, é colocado em situações de incoerência ou até hipocrisia. Em parte delas, não temos poder de decisão e precisamos brigar com as poucas ferramentas que temos nas mãos; em algumas outras, não temos nem mesmo consciência porque falta tempo para refletir em meio à sobrecarga.
Foi pensando nessas situações de risco que decidi escrever esse terceiro artigo da newsletter Comunicação Disruptiva. A ideia é ajudar a promover reflexão para romper com paradoxos que tornam a comunicação interna hipócrita e nos coloca em posições que definitivamente não merecemos estar.
SITUAÇÃO DE RISCO 1:
Humanizar a comunicação com empregados, mas desumanizar líderes ao tratá-los como ferramentas.
A consciência a respeito da posição que o empregado ocupa hoje no mundo do trabalho vem crescendo bastante. Na contramão, líderes têm sido muitas vezes colocados à parte disso, como se não fossem também empregados da organização e seres humanos.
Tornou-se comum ver a liderança compondo a lista de canais de comunicação, como se fosse ela mais uma ferramenta à disposição dos estrategistas da área.
Provas dessa perspectiva distorcida a respeito do lugar do líder na comunicação organizacional são os treinamentos prontos sendo replicados como se todos os líderes tivessem as mesmas necessidades e lacunas; os roteiros engessados que simulam apoio à comunicação de liderança; a falta de suporte no desenvolvimento de habilidades comunicacionais; a sobrecarga no volume de informações que líderes precisam receber, disseminar, alinhar. Como consequência desse posicionamento enviesado, faltam diálogo, alinhamento e parceria; sobram estresse e resistência.
SITUAÇÃO DE RISCO 2:
Dizer que a comunicação não pode ser chamada de interna porque não se limita ao âmbito interno da empresa, mas viver uma realidade na qual a comunicação não ultrapassa nem mesmo os limites das áreas.
Essa discussão sobre a nomenclatura ideal para a área é de longa data, mas ainda pouco me engaja porque me faz sentir incoerente. Não digo que não tenha importância, mas entendo ser mais relevante e muito mais urgente discutir os motivos que fazem a comunicação continuar tão interna em tantas empresas, ou seja, totalmente setorizada, com dificuldades para ultrapassar as fronteiras das áreas, das unidades.
Antes de me preocupar em dar à área um nome que deixe claro que ela não é restrita ao ambiente interno, prefiro e preciso me certificar de que ela de fato não está perigosamente limitada a âmbitos internos.
Tenho me dedicado também a pesquisas acadêmicas nos últimos anos e elas revelam o mesmo que detecto em trabalhos na consultoria: é alarmante a quantidade de empresas que seguem com esse problema, independentemente do porte, do setor, do nível de senioridade da equipe de Comunicação. Isso porque são muitos os obstáculos silenciosos à comunicação que vão sendo ignorados, enquanto grande esforço é depositado em questões de menor relevância ou urgência.
SITUAÇÃO DE RISCO 3:
Fazer mil pesquisas para ouvir o empregado, mas não considerar o que ele diz.
Esse é outro ponto importante que tristemente tem se repetido nas pesquisas acadêmicas e em muitos diagnósticos da consultoria.
Não faltam pesquisas, mas falta real escuta. A questão é que as opiniões dos empregados são colhidas, mas nada se faz a partir delas.
O “nada se faz” se traduz de duas maneiras: 1) os empregados não têm qualquer devolutiva sobre os resultados das pesquisas ou sobre o que se pretende a partir deles, e 2) veem suas perspectivas sendo totalmente desconsideradas nas tomadas de decisão da empresa. Quem se manteria motivado a participar de pesquisas que tomam tempo e não levam a nada? Eu não. Você também não. Então, por que esperamos um comportamento diferente do outro?
SITUAÇÃO DE RISCO 4:
Sobrecarregar o empregado com informação e depois traçar estratégias para recuperar a atenção que a sobrecarga matou.
Todos estamos cansados, especialmente depois da chegada da pandemia. O filósofo chinês Byung-Chul Han, autor da Sociedade do Cansaço (leia e espante-se ao notar como o livro fala sobre o seu cansaço também), escreveu em 2021 um artigo interessantíssimo dizendo que o cansaço característico da nossa era se tornou ainda mais intenso com a chegada da Covid-19.
O problema é que, apesar de exaustos, não cansamos de cansar os outros.
A máxima “quantidade não é qualidade” precisa virar um mantra em nosso trabalho. O filtro deve ser mais fino. Os critérios carecem de mais rigor. Enfim, tudo precisa ser feito para diminuir – drasticamente – o volume de informação. Como comunicadores, temos papel fundamental nisso; diria que temos, na verdade, grande responsabilidade. Temos responsabilidade porque, como seres humanos, não podemos seguir sobrecarregando indivíduos já exaustos; temos papel fundamental porque, como estrategistas, a sobrecarga que produzimos é um tiro em nosso próprio pé. Há tempos, Gary Grates nos alerta que o excesso de informação gera barulho e distração, levando a um cinismo por parte dos empregados. Nada pior para nós e para a empresa.
SITUAÇÃO DE RISCO 5:
Investir em tecnologia, como aplicativos e redes sociais corporativas, mas não ter uma cultura de diálogo na organização.
Ah, a tecnologia. Ela nos gera um fascínio e não é para menos. Quanto avanço ela proporcionou à humanidade em tão pouco tempo! Em nossa área, o impacto foi e é gigantesco. Passamos todos de coadjuvantes para protagonistas, com direito à fala – e uma fala de muito maior alcance. Mas a realidade é que a tecnologia continua a ser ferramenta, segue à disposição, esperando o que temos a comunicar. A questão é que só comunicamos quando há espaço para isso. Em uma cultura de silêncio ou medo, esse espaço não existe e, se ele não existe, para pouco serve a tecnologia, por mais sensacional que ela seja.
São raras as empresas que, antes de lançar redes e aplicativos, analisam o espaço e o nível de maturidade para o diálogo. São poucas também aquelas que fazem essa análise já com a tecnologia em uso, como forma de certificar que a fala tem sido autêntica e uma oportunidade igual para todos.
Investe-se tanto em tecnologia e nada ou tão pouco nos seres humanos que vão usá-la. Daqui a pouco, vamos concluir tristemente que seria mais inteligente a tecnologia nos usar do que ser usada por nós, seres humanos (ou isso talvez já aconteça de alguma forma, mas é reflexão para outro momento).
MAS E AGORA?
Vejo as situações de risco como enormes crateras no caminho que, apesar de tão grandes, têm o misterioso e perigoso poder de se tornarem imperceptíveis até o nosso tombo. Saber que essas crateras existem na jornada pode soar ameaçador, mas a solução começa justamente na consciência a respeito da existência delas e os tipos de ameaças que elas impõem. Isso nos torna alertas e nos faz caminhar com mais cautela.
No entanto, não basta ter consciência; como estrategistas, sabemos que é preciso agir, fazendo isso de forma planejada e com monitoramento. Os diagnósticos precisam ser bem desenhados; a escuta precisa ocorrer de forma autêntica; é necessário dar retorno aos públicos e manter diálogo com eles. É também imprescindível planejar cuidadosamente e monitorar sempre; direcionar a empresa; capacitar e educar pessoas em comunicação. Nosso campo é desafiador e não se contenta apenas com tecnologia; exige a nossa sabedoria.